Como era bom quando faltava um professor! Fazíamos uma festa! Tinha uma professora que gritou comigo várias vezes, eu odiava a aula dela e por isso não entendia nada da matéria. Uma outra debochou de mim quando eu disse que havia faltado no dia anterior por causa da enchente. Ela devia morar no outro lado da cidade para não saber do que nós sofríamos com as enchentes... Arremangar as calças até os joelhos e pôr os pés na água gelada, no inverno, às sete da manhã para ir pra aula definitivamente não é para qualquer um. Minhas professoras, por muito menos, deixavam de ir para a escola.
Até a quarta série eu era considerado um aluno exemplar, com direito a ler em público nas datas em que o colégio dava um cachorro quente e um copo de “ki-suco”. Não entendia muito o que estava lendo, mas as professoras gostavam. Minhas notas eram altíssimas, porque no colégio eu fugia dos problemas de casa. Nesta época me fizeram odiar o hino. Éramos obrigados a cantar uma coisa que nem entendíamos o que significava. O pior foi quando a diretora me chacoalhou e gritou “canta!”. Obrigavam a gente a marchar da vila até o centro da cidade, como se fôssemos soldadinhos de chumbo. Eu odiava isso.
Na quinta série uma vez levei uma suspensão. Briguei no recreio. Um olho ficou umas três vezes maior que o outro. Assinei o “livro negro”. Depois daquela briga percebi como é estúpido bater em alguém, como é estúpido apanhar também. Que grande bobagem! Minhas notas caíram mais que a confiança do povo nos políticos. Um dia apareceu escrito numa prova: “Você regrediu muito”. Fui direto para o dicionário, não sabia o que era regredir. Já era a segunda vez. Outro dia a professora de Português tinha me dito isso e eu achei graça. Ela ficou brava porque pensou que era deboche, mas eu estava rindo daquela palavra esquisita.
Na sétima série minha turma era a 71. Estudávamos pela manhã. No primeiro e no segundo bimestre não entendi nada do que estava acontecendo. Tirei vários “zero” nas provas. Marquei um encontro com uma menina para o último dia antes das férias de inverno. O nome dela era... bom, creio que não há necessidade de dizer o nome dela, não é? Acontece que no dia choveu. Eu fui até a escola, mas fiquei numa área coberta do lado de fora do portão. Esperei a tarde inteira e ela não apareceu. Meses depois soube que ela também passou a tarde suspirando e me esperando, só que do lado de dentro do portão...
As férias e a preguiça me acostumaram a dormir demais e a ler “de menos”. As aulas recomeçaram e eu não aparecia no colégio. Umas duas semanas depois, foram na minha casa me procurar. Mas não eram daquele colégio e sim do que eu estudava antes (chamado Mário Sperb). A dona Líria, uma orientadora educacional que atendia no SOE, mandou me chamar. Nem quis minhas explicações, foi logo me matriculando numa turma do noturno. Eu tinha treze anos e estava começando a trabalhar, cuidava de um estacionamento de uma farmácia. No ano anterior tinha sido vendedor de picolés.
Os professores e professoras eram diferentes, conversavam com a gente sobre qualquer coisa. Fui muito bem recebido e me aceitaram como eu era. Meus colegas eram mais velhos do que eu, e com eles aprendi a ouvir as pessoas mais velhas que têm muito mais experiência de vida do que a gente... O que fico me perguntando é o que teria acontecido comigo se ninguém tivesse me procurado, me ajudado. Com certeza hoje não seria professor e nem teria o prazer de conhecer as pessoas que agora lêem essas palavras, e que são para mim uma grande família.
Mas que grande falador sou eu. Lembrei de tantas coisas, falei tanto, mas o que eu queria mesmo era dizer pra você: aproveite bem o tempo que você passa aqui. A escola é um lugar onde a nossa vida acontece, onde a gente aprende coisas importantes e conhece pessoas. Meus amigos que abandonaram a escola quando eram adolescentes, hoje se lamentam e se arrependem. Espero que você saiba aproveitar este momento único da vida. O mundo precisa de pessoas que lêem e pensam, porque do jeito que as coisas estão não dá mais.
Elenilton Neukamp
2 comentários:
Querido colega Elenilton, simplesmente a-d-o-ro esse teu texto!!! Já o li em oportunidades diversas e nunca consigo abandonar a leitura (bem conhecida) nas primeiras linhas (prática habitual de quem tem menos tempo disponível do que oferta de bons textos pra ler).
E em todas as vezes, me torturam questionamentos recorrentes: poderia fazer diferença na vida dessa nossa garotada de hoje, um tempo gasto no envolvimento pessoal com o universo das circunstâncias que os faz "abandonar" a escola? Deveríamos, talvez, eleger algum tempo de nossa carga horária de "planejamento" para visitar as famílias, ou bater um "papo cabeça" individual com os "fujões"?
E aí falo de todos os escapes, das dores de cabeça, das sinusites, amigdalites e outras "ites" que motivam as saídas antecipadas da escola e as faltas. Também penso nos motivos reais, como os dias chuvosos que impedem o deslocamento de quem mora longe da escola e não tem guarda-chuva, daquele que veio à escola no dia anterior e molhou o único tênis, do que não tem roupa quente para os dias de frio...
Para onde vão e o que fazem esses desertores que não "encantamos" com nossas tão maravilhosas e planejadas aulas, ao ponto de conseguirem driblar todas as dificuldades e continuarem cumprindo corajosamente seus deveres de estudantes? A consciência disso inquieta, desafia, empurra para a tomada de alguma atitude. Mas... qual?
Sim, Isabel. Certamente faz diferença. Qualquer conversa com a gurizada faz diferença, porque foge da indiferença. Bom, como você leu no texto foi uma pessoa da escola que me chamou de volta e talvez tenha me "salvo".
Os alunos se impressionam com o textinho, talvez porque ele mostra que um professor também já foi criança e é um ser de carne e osso...
Talvez uma boa ideia seria produzir um livrinho onde cada um de nós contasse um pouco da sua história. Mas creio que poucos estariam dispostos a se "expor" assim.
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